Por Lúcio Flávio Pinto
Em certas palestras que faço em Belém peço aos paraenses presentes que levantem a mão. A esmagadora maioria faz o que peço. Há um quê de satisfação no ar. Entende-se – e com especial ênfase na Amazônia – que quem sabe mais sobre o local é o que nele nasceu.
Ao vir ao mundo, já estaria dotado, por cortesia genética, com um diferencial que o faz perceber mais sobre o que está em torno do que o visitante ou o imigrante domiciliado em sua terra natal. Assim, não me surpreende – mas me incomoda cada vez mais – que imberbes estudantes nascidos no Pará se levantem, durante os debates realizados em Belém, e intervenham para ditar regras, com a tábua das leis sobre a decifração da Amazônia nas mãos poderosas. Estudo e percorro a Amazônia há mais de 40 anos e o que posso afirmar é que minha ignorância sobre a região diminuiu nesse período.
Para o amazonólogo digital ou de outras regiões, conforme mostrei na coluna anterior, aplico a “pegadinha” do aviú, o micro-camarão do falso churrasco. É apenas para sondar a intimidade do conhecimento do dito especialista sobre aquela que já se admite ser a mais importante fronteira de recursos naturais do planeta, imensa e complexa, tão original que requer o contato físico mais demorado para sua decifração.
Aplico outra forma de teste para os que se consideram especialistas no tema só por terem nascido (ou se domiciliado) na Amazônia. Sem qualquer pejo, e também sem qualquer estudo a respeito, abrem a boca para dizer verdades hauridas em inspiração metafísica.
Mal os paraenses baixam as mãos, começo a perguntar sobre quem conhece Barcarena, Carajás, Tucuruí e Trombetas. Das dezenas de mãos iniciais sobram duas, três ou, em regra, nenhuma. Sugiro então aos especialistas por matriz genética que tentem visitar pelo menos esses quatro locais. Só quando voltarem, estarei disposto a reconhecê-los como verdadeiros paraenses e amazônidas, usurpando para tanto a função de tabelião da consciência amazônica.
Belém já não é mais a maior cidade da Amazônia, posição que perdeu para Manaus, com 300 mil habitantes a mais. A diferença é anulada quando se considera a área metropolitana da capital paraense, com seus mais de 2 milhões de habitantes, enquanto a capital amazonense se reduz ao município de Manaus, sem espraiamento demográfico metropolitano. Mas essa comparação não é a mais relevante. Belém continua a ser a capital cultural de toda Amazônia porque tem mais centros de pesquisa, universidades, bibliotecas, órgãos públicos e intelectuais em atividade.
No entanto, a cidade continua de costas para o interior do Estado, com seu território de 1,2 milhão de quilômetros quadrados, equivalente ao da Colômbia, e 7 milhões de habitantes. Os belenenses olham com cobiça para as praias de Fortaleza, o Rio de Janeiro, Miami ou a Europa. Mas não para dentro de si. Esquecem que a capital tem apenas 20% da população paraense e um terço do seu Produto Interno Bruto (Manaus tem 50% e 95%, respectivamente, proporções que ficaram para trás na história de Belém há várias décadas).
A 50 quilômetros da cidade funciona o maior distrito industrial do Norte do país. É formado pela maior fábrica de alumina do mundo, a Alunorte, que fornece esse insumo para ser transformado em metal pela vizinha Albrás, a 8ª maior do mundo e a maior do continente. Seu lingote de alumínio atende a 15% das necessidades do Japão, seu principal cliente e sócio (com a antiga Vale do Rio Doce), que fica a 20 mil quilômetros de distância.
Ao lado estão duas das melhores e maiores fábricas de caulim do mundo, produzindo argila para revestimento de papéis especiais. Há ainda uma fábrica de cabos de alumínio e uma siderúrgica, que se utilizam de terminais locais com a maior movimentação de carga do Estado. A renda per capita do habitante de Barcarena é cinco vezes maior do que a do morador da capital.
Em Tucuruí, 350 quilômetros ao sul de Belém, funciona a segunda maior hidrelétrica do país, menor apenas do que Itaipu, mas na qual o Brasil só tem metade da geração, ou seis mil megawatts, enquanto os 8,4 mil MW de Tucuruí são todos nacionais. Com essa usina de mais de 10 bilhões de dólares de custo o Pará se tornou o quinto maior gerador de energia do país e o terceiro maior exportador de energia bruta, que só será transformada em produto de maior valor agregado em outros Estados (ou mesmo no exterior), pagando o ICMS apenas na transferência.
Caminhando 200 quilômetros mais para o sul do Estado chega-se a Carajás, a maior província mineral da Terra, com minérios que se elevam do subsolo por 300 a 400 metros de altura, permitindo a lavra a céu aberto, sem a necessidade de minas em profundidade.
O maior trem do mundo faz nove viagens diárias (por 800 quilômetros) até um dos maiores portos do mundo, na ilha de São Luís do Maranhão, transportando minério no valor de 30 milhões de dólares. No final no ano, mais de 90 milhões de toneladas e quatro bilhões de dólares só com ferro. Mas há ainda outros minerais (manganês, cobre e, a partir deste ano, níquel).
Mais de 800 quilômetros a oeste de Belém e do litoral está o primeiro dos “grandes projetos”, que entrou em operação em 1979. Hoje é uma das maiores minas de bauxita do mundo. Todos os anos, quase 400 navios vão e voltam atrás desse minério, do qual resulta o alumínio.
A produção bateu em 18 milhões de toneladas, um recorde, e não pode ir além porque o rio Trombetas não suporta tanto navio. Sempre há um carregando, outro (ou outros) esperando a vez ao largo e mais algum a caminho. O Trombetas foi o primeiro rio amazônico a esgotar sua capacidade de transporte por causa do escoamento da bauxita.
Quem não for ver com os próprios olhos o que acontece ao menos nesses quatro lugares do Pará não tem o direito de se declarar paraense (nem de se dizer um entendido em Amazônia). É impossível não sofrer um forte impacto ao ver os enormes caminhões “fora de estrada” que retiram minério em Carajás, cada um carregando 200 toneladas (estão vindo máquinas com o dobro da capacidade), os maiores que existem, para encher os trens. Cada comboio alcança 3,5 quilômetros de comprimento, com seus 330 vagões e quatro locomotivas.
Ao deixarem a mina para a longa viagem até o mar, dão ao observador a nítida sensação de que testemunha uma hemorragia de minério, uma sangria desatada de recursos naturais. É o ferro mais rico da crosta terrestre, com 65% de hematita pura, que está sustentando os vistosos arranha-céus que se erguem em Xangai e outros lugares da China, compradora de 60% da produção de Carajás.
A história decisiva do Pará (como da Amazônia) está sendo escrita no interior da região, não nas capitais nem no litoral. Muitos paraenses acham que esses lugares remotos são paragens do passado, de um provincianismo mortal para o citadino “antenado” no mundo globalizado. É um erro primário e letal.
É nesses lugares distantes e isolados que se decide se a Amazônia vai continuar a funcionar como uma área colonial do mundo ou se vai ter vez para progredir com as riquezas de que é pródiga. Mas que estão sendo transferidas com velocidade incrível para outras partes do mundo, onde o enredo é escrito.
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